Malditos romanos. Malditos os que querem preservar a História e o Património: só atrapalham os empresários que querem construir, construir, construir...
Veja aí a seguir o artigo magnífico de Ana Henriques, tal e qual, inserido no «Público» de hoje.
Vestígios de fábrica de pitéus
romanos descobertos perto
da Torre de Belém
Grandes tanques em pedra provam que aqui se fabricou um ingrediente à base de peixe muito popular na época, que era exportada para todo o império.
Instituto Português de Arqueologia irá decidir da necessidade de preservar achados.
Por
Ana Henriques
Por detrás da barba percebe-se que o arqueólogo António Valera fez um esgar de repulsa. Uma colega imita-o, perante a sugestão de provar nos dias de hoje aquele que foi um dos grandes petiscos dos antigos romanos: o molho de peixe, ou garum, no original.
E, no entanto, o repugnante pitéu feito à base de peixe, do seu sangue e tripas, ovas, marisco e especiarias, tudo macerado em sal e fermentado, deu origem a uma descoberta que está a entusiasmar os arqueólogos em Belém.
Nas obras de instalação de um hotel de charme na antiga Casa do Governador da Torre de Belém, em Lisboa, junto à Universidade Moderna, descobriram-se vestígios de uma grande unidade de fabrico de garum. Até agora foram localizados 16 grandes tanques de pedra numa área de cerca de 600 metros quadrados correspondente ao pátio da casa senhorial, e pode haver mais ainda sob as construções existentes. Não se tratando de uma descoberta inédita - existem várias fábricas destas espalhadas pelo litoral português e espanhol por exemplo -, ela pode ajudar a compreender melhor o funcionamento desta indústria conserveira.
Era nos mega-recipientes de pedra revestidos a reboco - os especialistas chamam-lhes cetárias - que ficava a fermentar a pestilenta mistura. Um dos que foram aqui encontrados, na Rua Bartolomeu Dias, em frente à torre de Belém, mede sete metros de comprimento por quatro ou cinco de largura. "Não é costume serem tão grandes", assinala António Valera, que trabalha para a empresa de arqueologia Era e classifica esta descoberta como sendo "de grande valor científico", mais do que patrimonial.
Quando ficava no ponto, o que podia demorar dois meses, o preparado era metido em ânforas e exportado para todo o império romano, para ser consumido à mesa. A sorte dos arqueólogos é que no fundo destas cetárias encontraram restos que podem, depois de analisados em laboratório, fornecer dados sobre a composição exacta do garum aqui produzido. Num dos tanques, que a certa altura terá passado a servir de lixeira aos romanos, havia mesmo conchas dos moluscos que terão entrado na composição do petisco. Pelo formato de uma ânfora também aqui descoberta calcula-se que tudo se tenha passado nos sécs. I-II d.c. Foram igualmente encontradas no local duas moedas daquela época.
Especialista no período romano, o arqueólogo Carlos Fabião explica que o molho de peixe não era todo igual. "As actuais conservas podem ir da cavala ao caviar. A designação garum também abarca várias misturas de produtos maceradas em sal, com preços muito variados". Não parece haver dúvida de que se tratava de "um produto com uma popularidade gigantesca na antiquidade".
E de que forma era consumido? "Entrava nas receitas das mais variadas formas, para temperar pratos, inclusivamente de carne, ou como aditivo de outros alimentos", responde o arqueólogo, acrescentando que o mais antigo livro de receitas conhecido, "De res coquinaria", escrito pelo romano Apicius, faz referências a exóticas combinações de garum com vinho e até com mel. Apicius ter-se-á suicidado depois de ter gasto toda a sua fortuna em comida, por não poder continuar a alimentar-se da forma como estava habituado até aí.
O papel do sal na dieta mediterrânica era de tal forma importante, prossegue este especialista, que em Roma a população mais pobre ia às lixeiras buscar os cacos das ânforas onde tinha estado peixe em salmoura ou molho de peixe. "Ferviam os cacos em água para recuperar o sal que tinha sobrado", descreve.
O garum corresponde também a um mistério até hoje por esclarecer cabalmente: o seu desparecimento completo no final do séc. V d.c., já depois da queda do império romano. "É estranhíssimo não ter sobrevivido na gastronomia mediterrânica nada que o evoque depois de toda a popularidade que teve desde o séc. V a.c.", espanta-se Carlos Fabião. Segundo algumas teorias, o domínio árabe que se seguiu pode explicar o sucedido, uma vez que esta cultura não valoriza o peixe como alimento. Mas então como explicar o desaparecimento do célebre molho em França, na Itália e na Grécia, locais onde o domínio islâmico não chegou? - questiona.
O material agora descoberto em Belém poderá, segundo Carlos Fabião, confirmar uma tese segundo a qual a certa altura este tipo de produção passou a concentrar-se em unidades de maior dimensão, depois de uma fase de manufactura intensiva mais dispersa, em que imperavam as fábricas mais pequenas espalhadas por mais locais.
O local deverá esta semana ser visitado pelo presidente do Instituto Português de Arqueologia, Fernando Real, que decidirá sobre uma eventual necessidade de preservação dos vestígios, ou pelo menos de parte deles.
Promotor imobiliário apreensivo admite integrar parte das ruínas em hotel de charme
A empresa que está quer promover o hotel de charme na antiga Casa do Governador da Torre de Belém, a Sycamore - sociedade do grupo Carlos Saraiva que tem como administradores Tomás Vasques, antigo vereador socialista e antigo chefe de gabinete de João Soares e Margarida Magalhães, vereadora do Urbanismo Margarida Magalhães no penúltimo mandato autárquico - está apreensiva perante o acréscimo de gastos motivados pela escavação arqueológica em curso e perante a possibilidade de os achados porem em causa o projecto. Quem o diz é o técnico responsável pela obra, Humberto Martins: "Se tivermos de retirar muita área ao futuro hotel para preservar os vestígios a operação torna-se incomportável, uma vez que há limitações à volumetria da unidade hoteleira", observa.
"Mas estamos abertos à preservação de parte deles e à sua integração no hotel". Humberto Martins queixa-se da actual legislação, que obriga o dono da obra a suportar todos os custos inerentes à descoberta de bens arqueológicos nos seus terrenos - não só a sua escavação como os encargos derivados do atraso da obra: "Num caso como estes não há qualquer apoio financeiro. Todos os encargos são à nossa custa".
"A nossa grande angústia neste momento é não sabermos qual será a decisão do Instituto Português de Arqueologia relativamente aos achados", acrescenta Humberto Martins, mostrando-se receoso da descoberta de mais material arqueológico. "Se desistirmos agora perdemos x. Se desistirmos mais tarde perdemos x mais y", contabiliza.
Embora tudo dependa, de facto, do Instituto de Arqueologia, um dos arqueólogos encarregues da escavação, António Valera, é da opinião de que não se justifica preservar tudo o que foi encontrado. "Pode tentar-se a compatibilização entre o projecto e parte do que aqui está", alvitra. O arqueólogo Carlos Fabião defende por sua vez que "não é aceitável que o passado assuma um peso desmesurado tal que complique o presente".
"O hotel poderá tirar partido" desta descoberta, assegura. E dá o exemplo de Cádiz, onde o sector conserveiro aproveitou um passado igualmente ligado às conservas romanas para dele fazer a sua bandeira. "No final do ano passado estive num congresso sobre este tema em que umas das entidades patrocinadoras era o sector conserveiro da Andaluzia", exemplifica. Por cá cita os exemplos de uma loja de vinhos da Rua dos Fanqueiros, que alberga uma unidade do género das de Belém, e do núcleo arqueológico do Banco Comercial Português na Rua dos Correeiros, que entre outras coisas também inclui o mesmo tipo de vestígio romano.
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