Monday, March 27, 2006

Casinos

Eis a peça de Ana Henriques ('Público') sobre casinos nos anos 20:

A cidade que apostava tudo em noites polvilhadas a coca

Lisboa já foi uma cidade de jogo. Estava-se na década de 20 do século passado quando entre os Restauradores, o Rossio e o Chiado floresceram os clubes nocturnos - uma novidade feita de champanhe, cocaína, bandas de jazz e muito jogo clandestino, que veio tirar a capital da sua ancestral modorra.
Enquanto os operários continuavam a passar fome e a viver em condições miseráveis surgia uma nova classe ansiosa de esbanjar o que não lhe tinha custado a ganhar: os novos-ricos, gente que havia enriquecido por altura da I Guerra Mundial com negócios obscuros. Foi para esta burguesia que surgiram os clubes, como marca de um cosmopolitismo até aí quase inexistente. Júlia Leitão de Barros, no livro Os nightclubs de Lisboa dos anos 20, fornece um retrato minucioso destes locais onde se dançava foxtrot madrugada fora e se apostava até ainda mais tarde. "O jogo contribuía, de forma decisiva, para tornar o clube nocturno num local ambivalente: centro de luxo e de marginalidade civilizada", descreve. Alguns ocuparam palácios inteiros. Um dos mais chiques, o Maxim"s, instalou-se no Palácio Foz, nos Restauradores, o Avenida Parque no Parque Mayer, na Av. da Liberdade. Da decoração do primeiro, que tinha paredes forradas a talha, faziam parte telas de Columbano e de Malhoa. No palácio que alberga hoje a Casa do Alentejo, na rua do Coliseu, funcionou o Majestic. O olisipógrafo Appio Sottomayor conta, num artigo de A Capital, que datam dessa época as partes mais notáveis do edifício decorado em estilo neo-mourisco, que ainda hoje existem.
Os clubes rivalizavam entre si na criação de ambientes de luxo oitocentista, em que bandas de jazz alternam com espectáculos de variedades. Nessa altura, e segundo a obra Decadência e Queda da República Portuguesa, de António Telo, haveria mais de 20 mil prostitutas na capital. As que subiam o suficiente na vida - ou desciam, consoante o caso - tornavam-se papillons, que era o nome dado às que, como refere Júlia Leitão de Barros, procuravam restituir ao clube o que o jogador ganhava durante a noite, incentivando-o a gastar mais e mais. Muitas tinham caído na prostituição por via das drogas. O uso de estupefacientes entrou na moda nos loucos anos 20. O escritor Augusto Navarro contou num dos seus livros que se fumavam cigarrilhas de ópio de mel. Terá sido num destes clubes que, por volta de 1915, terá surgido a primeira retalhista de cocaína, uma mulher francesa. A facilidade com que se acedia à droga maldita dentro dos clubes levou as autoridades a elaborar em 1926 uma lista de viciados que afixaram à porta destes estabelecimentos, para proibir a sua entrada. Cenas de tiros nos clubes não eram inéditas, tal como não o eram as incursões policiais nos seus discretos salões de jogo. Mas tudo estava preparado para receber as autoridades. Nas suas memórias, citadas por Júlia Leitão de Barros, o chefe de polícia Pereira Santos explica como, em poucos segundos, uma sala de roleta se transformava, por via de habilidosos artifícios, "num animado e inofensivo dancing a que não faltava sequer uma orquestra, executando estrondosamente um tango".
Apesar de todas as proibições, o jogo florescia como nunca, como atesta um relato do director da Repartição de Turismo da época citado pela mesma autora: "Montaram-se casinos sumptuosos onde se perdiam fortunas ao jogo". Em 1918, o jornal A Capital estimava que houvessem só em Lisboa quatro mil pessoas empregadas no jogo.
Um vereador da Câmara de Lisboa chegou a sugerir que todas as casas onde funcionassem roletas fossem "expropriadas por utilidade pública" e transformadas em "moradia de família, sede de sociedades de instrução ou repartições públicas". Foi em 1919, mas o autarca teria de esperar quase uma década para ver os night clubs sucumbirem às novas leis do jogo. No final da década muitos clubes fecharam as suas portas para não mais as abrir, como que num prenúncio da noite salazarista que não tardava começar a cair sobre Portugal.

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