Tuesday, October 31, 2006

Profª Luísa Schmidt
Na revista «Única» do Expresso

Na edição de 14 de Outubro, a socióloga e jornalista LS publicou este texto desassombrado. Vale a pena ler em pormenor. Please! Veja só este acepipe: LS diz ali adiante que a Câmara de Lisboa vai-se tornando cada vez mais numa câmara escura. Aliás, todo o artigo é de uma dureza que me surpreendeu. Fala de brutalidades. Fala de loteamentos a eito. Fala com firmeza: “O PDM em vigor é como se não existisse e todos estes processos avançam ao trambolhão à revelia dos pareceres dos próprios técnicos da CML — técnicos esses que são constantemente desrespeitados, chegando mesmo a ser intimidados por aquilo que já é conhecido como «projectos com água benta»”.
E há muito mais. Aliás, o estilo da autora é muito chamativo.

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Lisboa cansa...

Quanto mais se constrói em Lisboa, menos lisboetas moram nela. Mesmo assim, os projectos sucedem-se e as irregularidades também. O Ministério do Ambiente não pode continuar a ignorar uma situação destas.
É indesmentível. Por mais eufórico que possa ser o discurso dos promotores — seja do imobiliário, seja dos megaeventos culturais, seja do estrelato de alguns arquitectos... — um facto permanece cravado na história recente da capital: cada vez há menos gente a morar nela.

Viver em Lisboa é cada vez mais penoso.

Aquilo que noutras cidades chega a constituir recreio: ir às compras, dar uma volta, visitas culturais, ir ao café, descansar num jardim... tornou-se aqui um tormento. A cidade está esgotante e a ficar insuportável como lugar de residência. Basta pensar na gestão das rotinas familiares, como seja o dia-a-dia escolar e as suas actividades complementares; o ir e vir dos empregos; as compras.
É este abismo entre as duas perspectivas — a eufórica dos promotores e a exausta dos lisboetas — que constitui a pedra de toque em qualquer debate sobre a cidade.
Mesmo que os turistas achem a cidade linda e pouco cara; mesmo que os promotores de megaeventos pareçam satisfeitos com o desempenho do lugar e mesmo que alguns empresários internacionais não excluam instalar escritórios aqui (como manifestaram num inquérito recente), o facto não deixa de ser intrigante: será que Lisboa só não serve para lisboetas?
O discurso dos promotores, dos dirigentes camarários e das suas máquinas publicitárias é cada vez mais entusiasta e, no entanto, paulatinamente, ano após ano, mais portugueses vão desistindo de morar na sua capital. Seja pelo preço, seja pelo desconforto, mas sempre pela má qualidade que a cidade oferece à vida regular, quotidiana e normal do cidadão comum.
Factos são factos: nos últimos 20 anos Lisboa perdeu mais de 25% dos seus habitantes e a população residente tornou-se esmagadoramente mais idosa e mais pobre.
Qual será então o sentido de todos os dias rebentarem notícias sobre a cidade? Ele é novos prédios, condomínios e centros comerciais; ele é vias rápidas, túneis incríveis; ele é arquitectos pagos (literalmente!) a peso de ouro para projectos de Ali Babá... Projectam-se colossos imobiliários nos espaços mais inusitados e até mesmo torres à beirinha do Tejo; urbanizam-se os miolos dos quarteirões; loteiam-se os espaços sobrantes. No meio desta salgalhada, lá vem mais um plano de salvação da Baixa. E, no entanto, sem quebra nas últimas décadas, cada vez mais gente, ano após ano, vai morar para outro lado. Porque será? A maioria PSD-CDS que dirige a CML não se interroga sobre isto? Nem os dinâmicos empresários da construção? Nem os seus efervescentes promotores? E o presidente da CML assobia para o lado?

É que, factos são factos,

e 112 mil casas devolutas à venda na cidade de Lisboa não impedem a autarquia de continuar a aprovar novos e enormes projectos que representam mais uns largos milhares de novos fogos para vender num mercado que já não os escoa. E isto sem contar com os inúmeros loteamentos de terrenos municipais despachados à pressa mesmo para locais sem qualquer aptidão urbanística.
E para que todo este imobiliário avance, toda a cidade se verga: as ruas transformam-se em Vias Rápidas, as praças dão lugar a parques de estacionamento e os logradouros a estaleiros. Aumentam assustadoramente os índices de poluição. Liquidam-se sistematicamente os espaços de respiração e de verde. Colapsam até infra-estruturas como o saneamento básico. O comércio tradicional dá lugar à cacofonia dos «franchising». O trânsito é cada vez mais intransitável e o ruído mais ensurdecedor.
Tudo isto enquanto cresce a arrogância da ostentação imobiliária que já nem por pudor oculta que é ela quem efectivamente manobra esta cidade.

Factos são factos

e o facto é que Lisboa está a ser massacrada com políticas do facto consumado. É como se não houvesse PDM, nem regras, nem planos, nem debate público, nem instâncias governamentais superiores. No delírio de novas urbanizações, grandes empreendimentos, loteamentos municipais, alienação de património público, subida de cérceas e torres colossais... a política urbana de Lisboa parece um caterpillar conduzido a toda a velocidade pelos interesses imobiliários.

Factos são factos

e os exemplos são muitos: o escandaloso empreendimento da Infante Santo (que já é um caso de polícia); Vale de Santo António, em Chelas (que fazia parte do Plano Verde de Lisboa e que agora vai para prédios); Aterro da Boavista, em Santos (com a badalada torre Foster chanfrada à beira-rio); Alcântara XXI (em pleno leito de cheia); o famigerado PUZRO — só o nome assusta — entre o Cais do Sodré e a Parque Expo. E depois há os novos planos das avenidas: na Av. de República — com um aumento de construção de 100.000 m2 só nos prédios que vão subir em altura; e o da Av. da Liberdade com prédios a subir e vastos estacionamentos subterrâneos a descer. E há ainda mais casos soltos como a pretensão das torres da Av. Fontes Pereira de Melo, ou outras à volta da Gare do Oriente para dar definitivamente cabo desta bela obra arquitectónica. Depois, os loteamentos dos terrenos municipais, uma iniciativa da CML para alienar todos os espaços sobrantes: os mais conhecidos são a Feira Popular e Parque Mayer (ambos já em tribunal), mas prevêem-se muitos mais, alguns em sítios absolutamente impróprios: Vale de Alcântara, Vale de Chelas, prolongamento do cemitério do Lumiar (Urbanização da Quinta do Pisani); ao cimo da Av. Ilha da Madeira no Restelo, frente ao Parque Urbano dos Moinhos, sob a chancela da EPUL, prepara-se um conjunto de monos futuristas de grande densidade. Vai tudo a eito até à venda de património classificado como a Quinta da Paz (ver Inaceitável), num rol de mais sete quintas e seis palácios históricos...

Duas coisas são comuns a todo este carrossel delirante: a total falta de sentido integrado do que seja a cidade e o seu destino; e um desembaraço absoluto em relação a leis, regras e até decência. O PDM em vigor é como se não existisse e todos estes processos avançam ao trambolhão à revelia dos pareceres dos próprios técnicos da CML — técnicos esses que são constantemente desrespeitados, chegando mesmo a ser intimidados por aquilo que já é conhecido como «projectos com água benta».

Quanto ao PDM em revisão, asfixiaram-no, o que até convém, para poderem aprovar tudo de uma forma avulsa e desmembrada. Quando o PDM sair, já não será necessário. O expediente da «água benta» terá decidido tudo o que era fundamental...

Para todas as pessoas que já fugiram de Lisboa, ou que estão em vias de o fazer, a constatação é clara: Lisboa é um jogo armadilhado em que os trunfos estão todos na mão da banca e do imobiliário e a imagem que a CML transmite é de um mero serviço a reboque dos promotores. Mas, nesse caso, a CML existe para quê? E o seu presidente preside a que coisas?

Nada nesta cidade reflecte cidadania. Pelo contrário. Basta ver pelas notícias dos jornais que esta cidade vive ao acaso e é governada em navegação à vista da pesca milagrosa do superinvestimento, ou do projecto do superarquitecto.

Só mesmo as instituições centrais por onde muitos destes projectos delirantes têm de passar — DGOTDU, CCDR, Secretarias de Estado e Ministério do Ambiente — podem acabar de vez com o delírio e a arbitrariedade.

É que, no meio disto tudo, o Governo tem sem dúvida uma palavra de peso: é pelo Ministério do Ambiente que passa a autorização, ou não, das alterações do PDM; que se abrem ou não as excepções e os precedentes (nas cérceas, nas torres, na construção em zonas verdes...)

O Ministério do Ambiente, que tem por incumbência zelar pelo interesse público, não pode continuar a ignorar e a ser ignorado nesta feira de irregularidades. Ou será que está à espera de que se constituam «direitos adquiridos» para depois termos todos de pagar as respectivas indemnizações?

Lisboa cresce hoje de uma maneira estranhamente parecida com o modo como ruiu no terramoto: a torto e a direito com toda a gente a fugir...

Inaceitável

É inaceitável que se ponham à venda as quintas e palácios classificados que sobram em Lisboa e que, para além do valor patrimonial público, constituem peças fundamentais da Estrutura Verde. É o que está acontecer na Quinta da Paz, ao Lumiar. Bem podem vir jurar que se privatiza apenas o edifício, mas o jardim fica público. O presidente da CML também já tinha jurado que jamais faria o que acabou de fazer. Dizia ele ao EXPRESSO em tempo de eleições: «…queremos consolidar a Estrutura Verde. Iremos… requalificar a Quinta Bensaúde e a Quinta da Paz» (1/10/05). Namoros de Verão...Esta quinta constitui um conjunto classificado que integra o Parque Periférico; prometeu-se instalar lá o Museu da Criança e, para isso, uma equipe da CML chegou a elaborar um projecto. Contudo, de forma expedita e inesperada, os actuais dirigentes camarários mudaram-lhe o destino. Fura os olhos que destas vendas nascerão novos projectos imobiliários e, assim, se vai transformando Lisboa numa argamassa de prédios escavada de túneis e parques subterrâneos.

Já existe um abaixo-assinado: www.PetitionOnline.com/srapaz/petition.html

Alerta

Conhecem aquele palacete neomourisco no Príncipe Real? É o Palácio Ribeiro da Cunha e querem fazer dele um hotel de charme. Até aí tudo bem. O pior é que o charme do hotel implica umas brutalidadezinhas menos charmosas: as obras alastram para baixo, para os lados e sobretudo para trás, destruindo o jardim do palácio e, mais grave, afectando o Jardim Botânico, à custa da impermeabilização que toda aquela intervenção implica. Este é um daqueles projectos despachados de forma simplificada por via dessa figura anómala designada «Plano de Pormenor em regime simplificado»... Não cabe na cabeça de ninguém fazer um plano de pormenor para um edifício só; tal como não cabe na cabeça de ninguém que os quartos de um hotel de charme prevaleçam sobre valores patrimoniais, naturais e históricos. Acima de tudo, é urgente pensar de forma integrada todo o pacote de intervenções que se preparam em redor do Jardim Botânico — Palácio Ribeiro da Cunha, Parque Mayer, Av. Da Liberdade, etc. — criando uma zona de protecção que acautele aquele insubstituível jardim.

Aprovado

Ao contrário da câmara escura em que se vai tornando a de Lisboa, os movimentos cívicos na cidade têm vindo a crescer e a promover com persistência a informação, a participação e a legalidade, por iniciativa dos próprios cidadãos e em parceria uns com os outros. Isto apesar das dificuldades que a CML opõe com sobranceria ao simples acesso à informação (e pensar que Carmona Rodrigues enquanto vice-presidente da CML, proferiu uma conferência no Fórum Roma explicando o modo como iria pôr em marcha a Agenda Local 21…). A participação activa dos cidadãos é, neste momento, decisiva e os movimentos dão-lhes voz, ânimo, estímulo e até têm conseguido algumas vitórias.

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Quem é Luísa Schmidt?

Retirei do site da Quercus o seguinte:
«Luísa Schmidt, socióloga e jornalista, dedica-se há vários anos à análise dos problemas ambientais do país, sem descurar a sua dimensão social. Escreveu “Ambiente no Ecrã”, um estudo exaustivo que analisa a forma como a RTP viu o ambiente ao longo de 40 anos. Esse trabalho deu origem à série televisiva “Retrato Ambiental de Portugal”, que a televisão pública acaba de transmitir. É uma das fundadoras do Observatório do Ambiente e em 2002 foi distinguida com o Prémio de Comunicação Ambiental das Nações Unidas».

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