Sunday, October 05, 2008

Notas a partir da Venezuela

O autor destas notas não as escreveu para serem publicadas tal e qual. E mais: ele não se preocupa nada com a acentuação das palavras... Mas eu publico assim mesmo: acho que têm ainda mais força asim, tal e qual...
Cheguei bem a Caracas. Depois de uma noite mal dormida no Aeroporto de Barajas, voamos durante oito horas e meia sobre o Atlantico. Quando saimos do Aeoporto Simon Bolivar, era ja noite (aqui anoitece as 18h) e estava um calor humido que se entranhava no corpo. Felizmente, uma amiga foi-nos buscar com um taxista que nos faz preços mais baixos. Deixamos as mochilas no Ateneu Popular e fomos comer arepas, comida tipica ca do sitio, e acompanhamos a nossa amiga na despedida a companheiros que iam para as montanhas de Perija, onde se trava uma luta pelos direitos dos indios Yukpa que sao acossados pelos latifundiarios. Ha cerca de um mes, assassinaram um indigena anciao de 109 anos e a coisa agudizou-se.

O Ateneu Popular é uma especie de centro cultural e social alternativo de pequena dimensao. Para alem das actividades que realizam, tem uma especie de pousada a preços acessiveis para jovens que chegam de outros paises. Naturalmente, o pessoal é todo bolivariano e estao com o processo. Existe um bom ambiente e é comum acabarmos as noites a cantar. Felizmente, encontramos uma casa na mesma rua do Ateneu. Ou seja, nao temos de nos adaptar a outra zona de Caracas. Ate Dezembro, viveremos em Los Chaguaramos, perto da Cidade Universitaria.

Ja conheci alguns portugueses, normalmente, madeirenses, que sao proprietarios de padarias e pastelarias. A um perguntei-lhe se preferia as coisas como estavam antes de Chavez ou se as prefere como agora. "Como antes, claro", respondeu-me. Parece-me que a maioria, como ja esperava, pertence à pequena burguesia e quer defender os seus negocios. Como os portugueses, tambem os italianos.

Caracas é uma cidade feia, cercada por favelas. As desigualdades sao gritantes. O processo esta presente em todo o lado. Ha murais por todo o lado. Por exemplo, a paragem de metro em que entro tem um mural com as caras de cerca de 100 revolucionarios. Desde Marx, Engels, Lenine, Neruda, Ali Primera, Che Guevara até Bolivar, Sandino, Zapata, etc. Por aqui, o melhor transporte é o metro. Apanho-o todos os dias. No segundo dia, fomos a um concerto em homenagem ao cantor comunista, entretanto, falecido, Ali Primera. Depois, fui convidado por uma companheira para subir ao Avila, as montanhas que cercam Caracas, e assistir a uma cerimonia indigena aimara dedicada ao equinocio. Partimos, eu, a companheira venezuelana e um companheiro boliviano da etnia aimara. Subimos durante cerca de hora e meia por rochas e penhascos, rios e cascatas e acabamos em frente a uma cascata que caia sobre um pequeno lago. Ali, o companheiro aimara deu-nos a mascar folhas de coca e começou a cantar na sua lingua. Embora seja ateu, considero que foi uma bonita cerimonia que representa muito do que sentem os povos originarios em relaçao a terra e a natureza. Depois, quando era ja noite cerrada descemos pelas mesmas rochas e penhascos, rios e cascatas sempre conduzidos pelo sentido de orientaçao do companheiro aimara. Pouco depois, vim a saber que desempenha um alto cargo de representaçao diplomatica dos indigenas bolivianos. Aproveitarei para o entrevistar mais tarde sobre a questao boliviana.

Hoje, dediquei o meu dia a visitar a Universidade Central da Venezuela. Ha duas. A UCV é historica e a Universidade Bolivariana da Venezuela foi criada pelo governo de Hugo Chavez. Na UCV vi bastantes faixas da Juventude Comunista da Venezuela. Tive a oportunidade de conhecer a gente que trabalha no Centro de Estudos pela Paz e de conhecer alguns professores. Oportunamente, o companheiro que ia comigo apresentou-me professores que me deixam assistir às suas aulas. Vou passar a frequentar "América Latina: revoluçao e contra-revoluçao. De Arbenz ao processo bolivariano." Parece-me que me vai ajudar a compreender melhor o contexto historico do que se passa actualmente na Venezuela e na America Latina. Na reprografia, estava uma rapariga a fotocopiar o "Imperialismo, fase superior do capitalismo" do Lenine e explicaram-me que era para a cadeira de Economia Marxista.

Entretanto, na sexta-feira, vou assistir, na favela mais conhecida, a uma cerimonia de homenagem ao Manuel Marulanda. Vai ser a primeira vez que entro num 'barrio' e que tomo contacto com a Coordenadora Continental Bolivariana. Naturalmente, vou fazer reportagem sobre a iniciativa. De resto, as coisas vao compondo-se. Em principio, vou colaborar com meios de comunicaçao comunitarios e ando a ver se consigo colaborar com a Telesur (eles tem emissoes em portugues para o Brasil). Tambem é possivel que va às montanhas conhecer a luta dos indigenas contra os latifundiarios. Mas nao é preciso sair de Caracas para encontrar o que reportar. A campanha eleitoral começou hoje e as coisas prometem aquecer. Pelo que me dizem, o problema, pelo que me dizem, nao se trata de quantas pessoas vao votar nos partidos que compoem a coligaçao bolivariana mas de quantas pessoas é que nao vao votar.

Continuo a pensar que isto nao é uma revoluçao mas um processo politico com reformas profundas. Mas daqui a tres meses estarei mais apto para confirmar esta opiniao.

Depois conto mais.

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Quando preparava a viagem para a Venezuela, o tema que mais vinha à baila, entre amigos e familiares, era o da segurança. Uma parte importante das noticias que chegam a Portugal tem a ver com a criminalidade violenta e, normalmente, aquela que afecta os emigrantes portugueses. Na verdade, Caracas situa-se entre as primeiras cidades latino-americanas no que diz respeito à violencia e isso também afecta a visao que temos da realidade social venezuelana. E embora seja uma verdade inquestionavel parece-me que a abordagem que desde o governo às associaçoes comunitarias se faz sobre o problema é o mais correcto. A criminalidade radica em problemas socio-economicos e é nesse sentido que deve ser combatida. Por isso, tive a oportunidade de conhecer varios dirigentes do associativismo dos 'barrios' - recordar que na Venezuela 'barrio' significa favela - que me falaram na importancia de envolver e ocupar os jovens nas tarefas e actividades comunitarias. Para além disso, surgiu uma missao bolivariana com o objectivo de levar o ensino basico à populaçao. Ou seja, depois do sucesso obtido pela campanha que erradicou o analfabetismo na Venezuela, o governo e os movimentos sociais lançaram-se no desafio de elevar o conhecimento de toda esta gente e no de combater um dos maiores amigos do capitalismo, a ignorancia dos povos.

Uma das organizaçoes que melhor espelha a vontade de estimular a participaçao de jovens e da populaçao é a Coordenadora Simon Bolivar (CSB). Situada no 'barrio' 23 de Enero, envolve toda a comunidade em torno de temas politicos e sociais. Para além de uma radio que emite 24 horas por dia e que é dinamizada, principalmente, por jovens, a CSB preocupa-se com temas tao distintos - ou nao - como sao as condiçoes do bairro e a luta dos povos contra a opressao. Nao admira, pois, que tenha sido aqui que homens e mulheres, principalmente jovens, arregaçaram mangas e ergueram, de forma voluntaria, uma bela praça dedicada a Manuel Marulanda, historico dirigente das FARC-EP. Dai o espanto de quem foi tantas vezes advertido, até pelos mais insuspeitos, da perigosidade deste 'barrio'. Na verdade, em nenhum outro lugar de Caracas me senti tao em casa. Em momento algum me senti inseguro e deixei-me descobrir um dos baluartes do processo politico bolivariano. Ali, no 23 de Enero, ja escorreu varias vezes o sangue de trabalhadores em luta contra a opressao. E, como no passado, os moradores parecem manter a mesma combatividade e o desejo de lutar por uma sociedade mais justa.

Sinceramente, nao esperava o que vi. Talvez porque, pessoalmente, nao considere o actual processo politico por que passa a Venezuela uma revoluçao. Efectivamente, o povo venezuelano é protagonista de transformaçoes importantes de caracter progressista mas com contradiçoes que conduzem a uma analise dificil da actual situaçao na Venezuela. Mas ali senti-me em territorio livre e, efectivamente, costuma dizer-se que o 23 de Enero é "territorio livre da América". Quando a cerimonia de inauguraçao da Praça Manuel Marulanda começou, centenas de pessoas enchiam o espaço mas dos prédios velhos e sujos outras tantas assomavam à janela para assistir à homenagem ao historico guerrilheiro colombiano. No telhado do edificio térreo que ladeia a nova praça, dezenas de jovens, activistas da Coordenadora Simon Bolivar, visivelmente orgulhosos, lançavam foguetes e gritavam de forma efusiva. Aquele, foi um dia de festa para uma comunidade que quis ligar, de forma indelével, o nome de Manuel Marulanda à sua propria historia. O 'barrio' 23 de Enero, onde, através de murais, as paredes falam de Che Guevara, de Simon Bolivar, de Augusto César Sandino, de Emiliano Zapata, de Iasser Arafat, de Ali Primera, de Mariatégui e de tantos outros, parece nao se importar com os epitetos que dedicam às FARC ou com os protestos formais que o Estado colombiano apresentou pela homenagem popular a um dos herois dos povos da América Latina. Também nao se pareceu importar com a ausencia de representantes do Estado venezuelano. No 23 de Enero, Manuel Marulanda, o campones, filho de camponeses, ressurgiu entre os seus.

Outra questao que chega a Portugal, para além da criminalidade, mas muitas vezes também conectada com ela, tem a ver com a condiçao dos emigrantes portugueses. Na zona onde vivo, e parece-me que é assim na maioria dos sitios, os portugueses dominam o negocio das padarias e dos mini-mercados. Todos os que conheci e que estao relacionados com estas areas se assumiram como anti-chavistas. Os unicos nao madeirenses e, curiosamente, os unicos que nao estao ligados a estas actividades que conheci sao os que estao com o actual processo. Um deles é dono de uma lavandaria e reconheci-o de imediato porque tinha uma camisola do Benfica - no dia do derby com o Sporting - e apresentou-me o portugues mais interessante que conheci deste lado do oceano. O senhor Sérgio tem uma livraria e é, claramente, um intelectual. Escreve para varias revistas e publicaçoes progressistas. Parece-me uma pessoa humilde e um pouco timida e a maioria da sua historia contou-ma um amigo seu, empresario, que, estranhamente, é proximo das suas ideias e que também defende o actual processo politico. O senhor Sérgio formou-se em Filosofia e esteve ligado ao MUD. Fugiu de Portugal, perseguido pela PIDE, e exilou-se na Venezuela. Esteve ligado à preparaçao do sequestro do paquete Santa Maria - foi quem forneceu as armas - mas por divergencias com Henrique Galvao retirou-se da operaçao. Mas esta é uma excepçao. Do lado oposto, entrei no outro dia numa frutaria de um madeirense. Perguntei-lhe porque nao tinha arroz e respondeu-me que nao o vendia porque dava prejuizo, uma vez que o governo havia bloqueado os preços do alimento. Acabou a conversa a insultar Hugo Chavez e disse-me, passando o polegar pela garganta, que os comunistas deviam ser todos mortos.

Por estes dias, também contactei com uma realidade que nos é muito querida quando, em Portugal, discutimos a Venezuela. A presença de médicos cubanos em Caracas é visivel e traz nao so a saude mas também a solidariedade internacionalista aos 'barrios'. Tive de acompanhar uma pessoa ao centro médico da Universidade Bolivariana da Venezuela que é gerido pela missao 'barrio adentro'. Ali, encontramos uma médica cubana que ja estivera no Haiti. Marcou analises e radiografias e falou-nos um pouco da sua experiencia pessoal. Naquele, como noutros consultorios que visitamos, nao faltam homenagens à revoluçao cubana. Numa outra missao cubana que visitamos, havia, na parede da sala de espera, as biografias dos cinco presos cubanos que resistem ha 10 anos nos carceres norte-americanos. Nunca nos pediram qualquer identificaçao ou para pagar qualquer acto médico e receberam-nos sempre com um sorriso. Num outro centro - visitamos tres missoes cubanas - que se situava no meio de uma base militar tivemos a oportunidade de assistir à simpatia dos soldados venezuelanos. Naturalmente, é comum, nos portugueses, a apresentaçao, para além da revoluçao de Abril, do processo politico bolivariano como exemplo para defender a manutençao do Serviço Militar Obrigatorio como condiçao essencial para manter o cariz popular das nossas Forças Armadas. Pois bem, apesar de ter sido um breve contacto com uma realidade mal conhecida, tivemos o privilégio de conversar com soldados sobre o papel do exército. Entre as dezenas de murais que afirmavam "Patria e Socialismo ou morte!", um deles conduzia-nos ao posto médico explicando que é importante o contacto com a populaçao e a abertura da base militar aos cidadaos. Para ele, o seu papel nao é o de participar em agressoes imperialistas mas o de defender o seu povo. Uns dias depois, um amigo italiano explicou-me que aquela base militar abre aos fins-de-semana à comunidade que pode usufruir da piscina, dos recintos desportivos e dos churrascos organizados pelos soldados.

1 comment:

Anonymous said...

Olá José Carlos

Meu nome é Flávio, sou brasileiro, sociólogo. Faço uma pesquisa sobre a Venezuela e vou a Caracas em janeiro.
Gostaria de conversar contigo. Tem como me passar seu email?

Grato