Thursday, October 23, 2008

Ganância humana e gorilas

«Em Foco»
Junho de 2001
Património comum – Ganância e guerra ameaçam gorilas
Por: CARLOS NARCISO
A ganância da espécie humana está a dar cabo dos habitats dos grandes símios africanos. À medida que a floresta vai caindo, avançam os caçadores de animais selvagens. As guerras feitas pelo homem aceleram o processo: o gorila está em vias de extinção.

”Parece-se mais com um gigante do que com um homem, porque é muito alto, mas tem a cara de um homem, olhos encovados e cabelo comprido...» – foi o português Eduardo Lopes quem escreveu estas frases num relatório da sua viagem ao coração da África central, em 1590. Sem a glória de outros conterrâneos, Eduardo Lopes serviu os reis de Portugal e contribuiu para a grande influência que os portugueses tiveram nos povos africanos durante muitos séculos. Sem saber o que estava a ver, Eduardo Lopes foi o primeiro homem branco a contactar com gorilas. 411 anos depois, os homens, brancos ou pretos, continuam sem saber grande coisa sobre esses animais, biologicamente tão próximos dos humanos. No início deste ano, uma expedição científica de biólogos continuou, de certa forma, o trabalho iniciado pelo português do século XVI. No Norte da República Democrática do Congo, numa região entre os rios Uéle e Ubangui, num território nunca antes observado pelos olhos de um cientista moderno, os cientistas andaram à procura de gorilas, embora seja altamente improvável que essa espécie animal viva nessas longitudes. Gorilas existem mais a oeste, nas florestas dos Camarões, mais a sul, na floresta do Mayombe, em Cabinda, e mais a leste, nas montanhas Virunga, na fronteira entre o Ruanda e o Congo. Mas não ali, por onde esta expedição se aventurou. Porque forem eles para lá? Porque havia uma possibilidade de encontrarem uma população de gorilas isolada naquelas florestas há milénios. Porque, se esses animais existirem e forem encontrados, eles serão parecidos com os antepassados biologicamente comuns ao homem e ao gorila.

Foram-se os portugueses ficaram os combonianos

Bili é a localidade mais importante na região onde a expedição se aventurou, a floresta do Makulungo. Bili foi, em tempos, uma povoação ocupada por colonos brancos: portugueses, belgas e gregos, maioritariamente. Hoje, foram todos embora, à excepção do grego Nikolaos. Ficaram também os missionários combonianos, não em Bili, mas em Bambilo e Bondo, a 1 e 2 dias de distância, respectivamente.
Nikolaos Fotopoulos chegou ao Congo em 1971, tinha então apenas 26 anos. Adaptou-se tão bem que nunca chegou, sequer, a aprender francês, a língua colonial. Nikolaos fala o dialecto kizande, a língua do povo da terra.
Da Grécia mata saudades através da telefonia, gosta da música pimba que lhe chega na onda curta, mas, apesar da nostalgia, não quer regressar. É a vergonha de ser pobre, de não ter sequer dinheiro para tentar a viagem. O grego Nikolaos vive numa casa que foi do português Figueiredo. Quando o português resolveu partir, Nikolaos pediu ao Governo que lhe concedesse a casa abandonada. E foi assim que ele ficou com uma oficina de reparação automóvel, com maquinaria para torrar café e descascar arroz. Nada funciona.
A oficina não trabalha, porque a guerra matou os automóveis. Em toda esta região, quase tão grande como Portugal, existem apenas 10 ou 12 carros que ainda funcionam. Nikolaos tem um desses carros que ainda andam. É um camião, que já serviu para carregar café até Isiro ou Kisangani, cidades a mil quilómetros de distância. Mas as plantações de café foram comidas pela floresta e, a enferrujar, ficou também a máquina de torrar o café. Resta-lhe o prazer de ligar, de vez em quando, a máquina de descascar arroz...
A chegada dos cientistas foi um grande acontecimento para a população local. O chefe tradicional da região e o feiticeiro deslocaram-se mais de 20 quilómetros para virem ao acampamento cumprimentar tão importantes visitantes, mas também para benzer o terreno, afastar os maus espíritos e lançar o “wene ngua”, a boa magia, para que os esforços dos homens brancos viessem a ser bem sucedidos. Um ritual seguido com todo o respeito, até porque mesmo não acreditando, nunca se sabe... Depois do chefe, foi a vez do feiticeiro que aqui se chama “boro ngua”, o mágico, traduzindo à letra. Só o mágico sabe convocar os espíritos e pedir a sua protecção. Depois do ritual fomos todos convidados para assistir e participar na festa que ia acontecer na aldeia, em honra dos visitantes, isto é, em nossa honra. Como não se consegue dizer não a um convite destes, lá fomos num domingo assistir às danças tradicionais, aos batuques, às exibições dos adivinhos e a uma missa mais cantada do que rezada, como manda o rito zairense da Igreja Católica. Assim começou uma expedição científica.

Os nossos parentes mais chegados

De todos os grandes macacos, o gorila é o mais difícil de observar, porque vive em pequenos grupos familiares e porque há cada vez menos. O gorila está em vias de extinção, não há mais do que alguns milhares em liberdade. A extinção desta espécie deve-se ao abate das florestas e à caça. Além de serem poucos, os gorilas vivem normalmente em florestas densas, onde o homem tem grandes dificuldades em se deslocar. O gorila é tímido e pode passar a vida inteira escondido do olhar dos curiosos. Por tudo isto, não era fácil a tarefa dos cientistas. Mas a verdade é que, no início da expedição, os cientistas não consideraram essencial ver o animal. Diziam eles que lhes bastava observar os vestígios de como vive. Estudar as camas de folhas que fazem tanto no chão como nos ramos das árvores, e à volta das quais se encontram restos de comida, pêlos, fezes, enfim os vestígios do dia-a-dia do animal. É verdade que estes cientistas encontraram muitos vestígios idênticos aos que os gorilas deixam, inclusivamente pegadas, mas não chegaram a conclusões definitivas. As principais razões que provocaram a incerteza no espírito dos cientistas: a floresta onde decorreu a expedição não parece possuir recursos alimentícios suficientes para uma população de gorilas e... nunca viram o animal. Sendo assim, aqueles animais, que tão bem se escondem na floresta, tanto podem ser gorilas como chimpanzés com hábitos de vida pouco comuns a chimpanzés.Esta expedição científica demonstrou que a ciência ainda pouco sabe sobre gorilas e chimpanzés, mau grado estes serem biologicamente os parentes mais próximos do homem. O homem e os grandes símios partilham 98% do ADN comum e partilhamos os mesmos antepassados biológicos. Mas o homem não tem tido qualquer respeito por esse parentesco. A ganância da espécie humana está a dar cabo dos habitats dos grandes símios africanos. À medida que a floresta vai caindo, avançam os caçadores de animais selvagens. Hoje, já quase não há territórios virgens no continente africano. As guerras feitas pelo homem provocaram o extermínio do gado e, em muitos territórios, as populações voltaram a caçar para sobreviverem. Um mês e meio depois de ter começado, a expedição terminava com uma sensação de frustração. Os cientistas não sabiam bem o que dizer daquilo que tinham observado. Se tivessem escutado a voz do povo, das pessoas que ali vivem e que caçam na floresta, os cientistas diriam que sim, que o gorila existe. Os caçadores falam em encontros frequentes com grandes macacos. Tão grandes que não podem ser chimpanzés. Relatos que condizem com alguns dos vestígios encontrados na floresta. Se tivessem escutado a sabedoria dos missionários, que ali vivem há décadas, os cientistas teriam percebido que o povo Azande é cioso das suas coisas e não partilha com qualquer um o seu modo de vida. Os cientistas palmilharam muitas centenas de quilómetros pela floresta adentro, atrás de pisteiros e caçadores azandes... só viram o que eles quiseram mostrar.

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