Baixa de Lisboa
«PLANO DE SALVAGUARDA, JÁ!»
Por
Rui Valada – Arquitecto Paisagista
Responsável pelo Projecto de Requalificação do Rossio
«O Relatório apresentado pelo Comissariado da Baixa-Chiado sobre o projecto de recuperação, reabilitação e revitalização desta zona da cidade constitui, sem dúvida, um esforço meritório de sistematização de “ideias”, “estudos” e “projectos” que têm vindo a ser objecto de discussão ao longo dos últimos anos.
Apresenta, igualmente a definição de uma intervenção global, assente num diagnóstico da actual situação, numa visão que comporta quatro grandes “ideias estruturantes”, que merecem consenso generalizado, e no estabelecimento da estratégia a seguir. Trata-se de uma metodologia correcta que importa realçar, sem prejuízo das ressalvas que há a fazer quanto a algumas das soluções concretas apontadas e que, a seu tempo, haverá que contrariar.
Concentremo-nos, pois, naquilo que pode ser objecto de decisão imediata e irreversível.
Perigo! Circular da Colinas
A construção da Circular das Colinas é apresentada como condicionante do desenvolvimento de todo o projecto e, por isso, merece uma imediata e cuidada atenção, não vão as instâncias decisórias embarcar na onda e, quando dermos por ela, lá temos outro túnel a esventrar a cidade (dois, ao que parece).
Segundo a proposta do Comissariado, a Circular das Colinas será constituída por um conjunto de vias já existentes (Av. Infante Santo, Av. Álvares Cabral, Largo do Rato, R. Alexandre Herculano, R. Conde de Redondo, R. Joaquim Bonifácio, R. Jacinta Marto, R. de Angola e Av. Mouzinho de Albuquerque), a completar por um conjunto de trechos em túnel (túnel da Estrela e túnel do Miradouro do Monte Agudo).
Trata-se de um projecto antigo que tem sido muito contestado. Ainda que no Relatório se diga que se pretende manter o carácter urbano destas ruas e avenidas, tal afirmação entra em contradição com a necessidade de aumentar a sua capacidade e fluidez por forma a absorver, para além do tráfego que já hoje aí circula, todo o tráfego que atravessa a Baixa e que se pretende que, no futuro, venha a ser desviado para esta circular. Os impactes negativos que daí decorrerão não foram sequer avaliados e não se pode aceitar que seja alterada radicalmente a função e o carácter de ruas e avenidas residenciais para as transformar em canais de circulação viária.
O modo de financiamento da construção da Circular das Colinas levanta as maiores dúvidas já que não se percebe quem o vai suportar efectivamente, sendo certo que as três soluções apontadas acabam sempre por depender do financiamento do Município (pag. 146). A menos que, como já foi adiantado pela própria Vereadora até aqui responsável pela Baixa-Chiado, se admita o estabelecimento de portagens, talvez à entrada da Av. Infante Santo…
Modelo Institucional e/ou multiplicação de estruturas
A adopção do Modelo Institucional proposto condiciona, como é evidente, todo o processo de desenvolvimento do projecto e é a primeira decisão que terá de ser tomada, prevendo-se que o seja em Fevereiro de 2007.
Na justificação do modelo institucional (pag.134) são indicados os pressupostos em que o mesmo assenta, entre eles, “a criação de uma única “entidade” para gerir o espaço de intervenção, reunindo para o efeito as necessárias competências governamentais e camarárias”. Este é, pois, um dado de que se parte e não se procura sequer encontrar outras soluções ou analisar as potencialidades das que já existem, designadamente não se averigua se a actual Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) pode desenvolver, e como, o projecto de revitalização da Baixa-Chiado.
Pelo contrário, a actual SRU, que já dispõe de flexibilidade de actuação e meios de intervenção expeditos, fica “dependurada” no modelo institucional proposto (pag.140), sem funções definidas e parecendo existir apenas porque os poderes que lhe estão conferidos por lei não podem ser “transferidos” para outra entidade, ou seja, para a sociedade a criar, SGU- Sociedade de Gestão Urbana (pag.144). Assim, e não sendo legalmente possível transmitir a participação, representativa do capital da SRU, do Município para a SGU, o Comissariado propõe que “o Município atribua à SGU mandato para o exercício dos seus poderes enquanto accionista”, o que se traduz na total subordinação da pré-existente SRU à nova SGU.
De igual modo, não é dito o que acontece à Unidade de Projecto da Baixa-Chiado e à equipa que tem trabalhado a Candidatura da Baixa-Chiado a Património Mundial, nem é referida qualquer articulação com a Agência para a Promoção da Baixa-Chiado, constituída em 2001, e de que a CML é um dos associados fundadores.
Sem pôr em causa a necessidade de assegurar, de forma integrada, o planeamento e a execução das actividades a desenvolver pelas diversas entidades, públicas e privadas, envolvidas no projecto, o que se questiona é a complexidade do modelo institucional proposto que implica a multiplicação de estruturas autónomas, todas elas revestindo a forma de sociedades anónimas.
Para já, será desde logo constituída uma Sociedade Gestora (holding?), detida pelo Estado e pelo Município de Lisboa, que por sua vez irá criar a sociedade gestora de projectos estruturantes (SGPE) e a sociedade de gestão urbana e infra-estruturas (SGU). Escusado será dizer que cada uma destas sociedades arrasta consigo os inerentes custos de funcionamento, com conselhos de administração e demais órgãos sociais que envolvem pagamentos de elevadas remunerações e outros encargos, num crescendo de custos sobejamente conhecido.
Resta perguntar se não seria possível que o Comissariado integrasse o Conselho de Administração da actual SRU da Baixa-Chiado, deste modo interligando a visão estratégica do projecto com os instrumentos de execução concreta. Aliás, o modelo de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, com participação municipal e estatal, está previsto no DL nº 104/2004, que criou as chamadas SRUs.
Estas SRUs detêm já poderes que lhes permitem accionar a tal “Via Verde” de que fala o Relatório, necessária para acelerar procedimentos no que respeita “aos processos de revisão de instrumentos de gestão territorial aplicáveis, aos processos de licenciamento e, em geral, na emissão de quaisquer actos administrativos” (pag. 136).
Planeamento Urbanístico ou”Iluminismo”?
A propósito dos referidos instrumentos de gestão territorial, há que alertar para outro aspecto que, no Relatório apresentado, se reveste de particular gravidade – trata-se do modo como é encarado o planeamento urbanístico (pag.147).
Já havia sido dito (pag.137) que a “entidade gestora deve dispor da capacidade de elaboração dos instrumentos de gestão territorial que se mostrem necessários para a concretização do Projecto” sem avançar muito mais, ainda que fossem focadas as limitações decorrentes do art. 39º do RPDM – que obriga à elaboração de um plano de pormenor ou regulamento municipal – e do art. 40º que determina que, na falta daqueles, as operações urbanísticas se limitem à beneficiação, restauro e conservação dos edifícios existentes.
O modo como o problema é encarado e resolvido no Relatório causa grande preocupação quanto ao que pode vir a suceder se forem seguidas as soluções propostas.
Começa-se por dizer que “a elaboração de um plano de pormenor é um processo moroso, incompatível com as necessidades do Projecto”, acrescentando de seguida que ”o conteúdo dos planos de pormenor é demasiado denso e, por isso, rígido”, sendo proposta a elaboração de um regulamento (pag. 147).
Mas também a figura do regulamento não parece merecer acolhimento já que “não permite a realização imediata das acções previstas”, pelo que se sugere “que se proceda à suspensão da regra do art. 40º que limita as actividades a realizar na zona”. É verdade que, a seguir, se explica que tal suspensão só é possível mediante parecer prévio da CCDR e desde que, em simultâneo, seja deliberada a alteração do plano suspenso - note-se que a revisão do PDM está em curso - e adoptadas medidas preventivas.
Ora aqui é que a solução avançada é de todo inaceitável. Como medida preventiva, prevê-se apenas “a sujeição das intervenções a prévio parecer do IPPAR” como se esse parecer não fosse já obrigatório ainda que não existissem medidas preventivas! Significa isto que não se propõe qualquer tipo de medida preventiva e, suspensa a aplicação do PDM, tudo é possível.
Tanto mais preocupante é esta hipótese quanto é certo que, com o título sugestivo “Salvaguardar e criar de novo” (pag. 111), está escrito: “A determinação de que o edificado mais íntegro da área de intervenção vai ser valorizado, dentro dos limites impostos pelas exigências da salvaguarda, não é incompatível, em termos do Instrumento Urbanístico a elaborar, com a possibilidade, a ponderar caso a caso, de se realizarem eventuais demolições, dando lugar a edifícios novos, relativamente integrados em termos urbanísticos e de qualidade arquitectónica moderna”.
Conviria saber o que se entende por “edificado mais íntegro da área de intervenção”, assim como o que se quer dizer quando se fala em “edifícios novos, relativamente integrados”. A dúvida é tanto maior quanto a seguir se afirma expressamente que está prevista “a demolição de desqualificados pastiches neopombalinos sem qualidade”.
É certo que, logo a seguir, se ressalva: “O que se exige é que o instrumento urbanístico garanta as condições de credibilidade para que qualquer «criação de novo» seja, de facto, sempre excepcional e rigorosamente justificada” (pag. 112).
O problema é que, no final do Relatório, quando se fala precisamente de Planeamento Urbanístico, o que se propõe é a supressão de qualquer instrumento urbanístico, dando azo à total discricionariedade, tanto na tomada de decisões relacionadas com a selecção dos edifícios considerados “não qualificados”, a demolir, como quanto à fixação das regras urbanísticas a que deve obedecer a construção dos novos edifícios.
Resta perguntar quem são os “iluminados” que vão tomar essas decisões.
Pergunta pertinente, ainda que incómoda, se se atentar nas eventuais consequências decorrentes do conhecimento, mais ou menos público, de que vão ser demolidos determinados edifícios na Baixa-Chiado e de que não existem regras definidas para a operação urbanística a aprovar para aqueles locais.
A especulação imobiliária, sempre atenta, não deixará de aproveitar a oportunidade única de comprar um edifício que se prevê seja demolido para aí construir outro sem os “entraves” das regras urbanísticas tão pouco apreciadas.
Esperar-se-ia deste Comissariado que apresentasse os instrumentos urbanísticos que permitiriam o desenvolvimento coerente e rigoroso das intervenções futuras, sendo de estranhar que a esse respeito apenas tenha sido proposta a suspensão do PDM.
Mas, se assim é, então que se exija a elaboração, com carácter de urgência, de um Plano de Salvaguarda, previsto no art. 53º da Lei do Património Cultural para as situações em que exista um conjunto classificado como sendo de interesse público, caso da Baixa Pombalina. E aí, entre outras coisas, terão de ficar definidos os critérios de intervenção nos elementos construídos e naturais, evitando apreciações avulsas, caso a caso, e de acordo com critérios de oportunidade - urbanística ou outra - nem sempre claros.
Antes que seja tarde de mais!»
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