Câmara relança processo contra o Estado no valor de 1615 milhões
11.01.2009, José António Cerejo ('Público' hoje)
Autarquia não sabe quanto já gastou
11.01.2009, José António Cerejo ('Público' hoje)
Autarquia não sabe quanto já gastou
O custo deste processo para a Câmara de Lisboa é neste momento uma incógnita. Por duas razões. Uma delas é habitual em acções de grande complexidade, como esta, que se podem arrastar dezenas de anos entre recursos e incidentes de todo o género, e prende-se com a carga de trabalho que o caso vai exigir dos advogados. Outra é o facto de, aparentemente pelo menos, ninguém saber na câmara quanto é que já foi pago aos mandatários do município nestes 13 anos.
De acordo com Manuel Seabra, chefe de gabinete do presidente da autarquia, António Costa, a câmara ainda não pagou quaisquer honorários à sociedade de advogados RPA por conta deste processo. Uma informação escrita, da Direcção Municipal de Finanças, adianta contudo que foram pagos à RPA 643.500 escudos em 1995, mais 960 euros em 2002 e 4117 euros em 2003 (cerca de 8100 euros no total). O texto esclarece que esses valores são os que constam do sistema informático, mas salienta que não é, neste momento, possível confirmar se se referem ao processo do aeroporto, nem se se trata de honorários ou não.
Sucede que numa listagem de pagamentos feitos a advogados nos últimos anos, anteriormente facultada ao PÚBLICO, constata-se que o município, por conta dos honorários e despesas com o processo do aeroporto, pagou no ano passado cerca de 90 mil euros à RPA, relativos ao período 2003-2006. O pagamento chegou a ser autorizado em 2007 por Carmona Rodrigues - apesar de o Departamento Jurídico da câmara ter informado que não possuía quaisquer elementos sobre o processo desde 1996 -, mas acabou por não ser feito nesse ano. Já no mandato de António Costa foram levantadas algumas dúvidas sobre os honorários apresentados e sobre a cobertura legal do ajuste directo efectuado entre a câmara e a RPA no tempo de Jorge Sampaio. Um parecer jurídico externo então solicitado e que depois mereceu a concordância dos responsáveis jurídicos da autarquia concluiu que o ajuste directo, para ser válido, teria de ter sido autorizado pela assembleia municipal, mediante proposta fundamentada do executivo, mas salientou que os elementos disponíveis não permitiam confirmar que isso tenha acontecido. A outra questão levantada pelo parecer era a da necessidade "imprescindível" de confirmar junto do Departamento Jurídico a "efectiva prestação" dos serviços facturados, para que o pagamento "não suscite quaisquer dúvidas". O Departamento Jurídico, que em 2007 já tinha dito nada saber do processo desde 1996, não voltou a pronunciar-se - a avaliar pelos documentos fornecidos ao PÚBLICO pela câmara -, mas o pagamento foi efectuado em Março do ano passado. Uma fonte da administração da RPA disse que as facturas em questão se prendem com a "regularização de mais de 100 prédios [terrenos do aeroporto] a favor da Câmara de Lisboa". J.A.C.
Dez anos depois de ter sido suspenso por decisão judicial, o processo em que a Câmara de Lisboa reivindica a propriedade dos terrenos do Aeroporto da Portela deverá ser retomado em breve, a pedido do advogado do município. Na acção posta em 1995 contra o Estado, a ANA e a TAP, a autarquia pede a devolução dos terrenos que diz serem seus e não estão directamente afectos à actividade aeroportuária, bem como uma indemnização por conta daqueles que foram usados na construção do aeroporto.
Aos primeiros o tribunal atribuiu, em 1999, o valor de 1225 milhões de euros (245 milhões de contos), montante que, adicionado aos 390 milhões de euros (78 milhões de contos) pedidos a título de indemnização, faz com que este processo seja um dos de valor mais elevado jamais apreciados pela justiça portuguesa (1615 milhões de euros).
Antes de avançar para os tribunais, o antigo presidente da câmara Jorge Sampaio aconselhou-se com Freitas do Amaral, no Verão de 1990, e com Sérvulo Correia, em 1992. Os pareceres de ambos coincidiram quanto ao reconhecimento dos direitos do município sobre os terrenos da Portela. E logo em 1993 o caso foi entregue, por ajuste directo, à sociedade de advogados então liderada pelos ex-ministros Rui Pena e Rui Machete (actual RPA-Rui Pena, Arnaut e Associados). Nesse ano começou a interminável recolha da documentação em que a câmara pretendia alicerçar a defesa dos seus interesses.
Já em 1995 Rui Pena entregou no 5.º Juízo Cível de Lisboa as 98 páginas da petição inicial, acompanhadas dos registos, escrituras e outros meios de prova que até aí conseguira reunir relativamente às 117 parcelas de terreno que a sua cliente reivindicava. A tese era simples: os terrenos da Portela foram comprados ou expropriados pelo município entre 1935 e 1962, por sua exclusiva iniciativa, para ali ser instalado o aeroporto de Lisboa, sem que lhe fosse paga "qualquer contrapartida fosse a que título fosse, limitando-se os seus actuais possuidores a tomá-los para si, usando-os e fruindo-os como bem entendem".
No total, estão em causa os 250 hectares do aeroporto propriamente dito e cerca de 260 hectares de terrenos adjacentes, que também se encontram na posse da ANA (empresa pública que gere o aeroporto), da TAP e de diversos serviços do Estado. No cerne da argumentação camarária está o facto de o Estado, pondo fim à prática vigente desde a inauguração do aeroporto, em 1942, ter afastado o município da sua administração em 1979, quando a ANA foi criada. Com a entrega da infra-estrutura aeroportuária a esta empresa, o Estado impediu o município de "rentabilizar o seu investimento, mediante a cobrança de taxas e licenças de utilização", e "fez seus todos os proventos derivados da sua exploração", salienta o articulado da acção.
Distinguindo os terrenos situados na área envolvente - nos quais se encontram, nomeadamente, os parques de estacionamento, os espaços verdes, as instalações da PSP e os edifícios da TAP - daqueles que correspondem ao "aeroporto em sentido técnico", ambos com áreas semelhantes, a câmara reivindica a restituição dos primeiros, atribuindo-lhes um valor de 375 milhões de euros, e pede uma indemnização de 390 milhões de euros pela "expropriação de facto" dos segundos.
Avaliação independente
Inconformada com estes valores (um total de 765 milhões de euros, o equivalente a 153 milhões de contos à época), que considerou "absurdos", "exorbitantes" e provavelmente os mais altos "já alguma vez demandados judicialmente entre nós", a ANA pediu na sua contestação, em Junho de 1995, que eles fossem fixados no máximo de 18 milhões de euros. Perante o fosso existente entre as duas posições, a juíza ordenou uma avaliação independente, que veio, já em 1998, a fixar o valor da área envolvente em 1225 milhões de euros (3,2 vezes mais do que a câmara lhes atribuíra). Somando este valor ao da indemnização requerida, o tribunal estabeleceu o valor da acção, em Março de 1999, num total de 1615 milhões de euros. Simultaneamente, a juíza determinou a suspensão do processo até que a câmara fizesse prova de ter registado a acção em curso no registo predial de todas e cada uma das 117 parcelas em disputa.
Passados quase dez anos e após sucessivas prorrogações do prazo de suspensão, que a ANA e o Ministério Público muitas vezes contestaram em vão, inclusivamente no Tribunal da Relação, acusando o município de "negligência processual", o processo deverá brevemente voltar a seguir os seus trâmites normais.
Isto porque o advogado Rui Pena apresentou, em 24 de Novembro passado, um requerimento ao tribunal em que pede, em nome do município, o fim da suspensão da instância. Motivos: finalmente, foram ultrapassados os obstáculos burocráticos que impediam a realização de quase todos os registos em falta; e um decreto publicado no Verão de 2008 permite que este tipo de processos avance mesmo sem estarem concluídos os tais registos.
Agora cabe ao tribunal decidir sobre o prosseguimento da acção. Uma coisa é certa: logo que isso aconteça, deverá seguir para a Relação o recurso que a ANA pretendeu interpor contra o valor fixado para a acção e que a juíza recusou, em 1999, por entretanto ter ordenado a suspensão do processo. Tanto o Estado, através do Ministério Público, como a ANA pediram nas suas contestações, logo em 1995 e 1996, que a acção interposta pelo município fosse declarada improcedente. Em ambos os casos um dos principais argumentos utilizados prende-se com a alegação, contestada pelo município, de que o Estado terá comparticipado em 50 por cento as despesas feitas pela câmara no aeroporto, nomeadamente com a aquisição dos terrenos. Além disso, sustentam, a câmara não comprou os terrenos por sua "exclusiva iniciativa", mas sim na qualidade de instrumento do Estado, por dispor de um serviço especializado em expropriações. Uma outra ideia-chave é a de que o município e a cidade beneficiaram largamente, e a vários níveis, com a construção do aeroporto. O Ministério Público alega por outro lado que, independentemente de tudo o resto, os terrenos já se tornaram propriedade do Estado por usucapião, uma vez que já estão na sua posse pública e sem contestação há muitas dezenas de anos. O representante do Estado sustenta também que a câmara "não teve qualquer prejuízo" porque os terrenos "não tinham qualquer valor particular" antes de ser feito o aeroporto e porque "a sua passagem para o Estado se ficou a dever, em grande parte, à sua [do município] manifesta incapacidade financeira de levar a bom termo o projecto [do aeroporto] a que se tinha abalançado". Apesar de também ser visada na acção, a TAP não interveio no processo até agora. A representação da ANA contra a câmara foi assegurada, entre 1999 e 2004, pelo advogado que desde 2005 assegura a defesa dos interesses da autarquia no âmbito dos litígios relacionados com o túnel do Marquês de Pombal. E o advogado que o substitui na defesa da ANA é o mesmo que em 2004 representou a câmara em três processos relativos ao mesmo túnel do Marquês. Depois de ter acusado várias vezes o município de "negligência processual" para que a acção posta contra a ANA não avançasse, Guerra Tavares deixou o patrocínio daquela empresa pública, em Agosto de 2004, sendo substituído por Rodrigo Esteves de Oliveira. Alguns meses depois, a câmara contratou Guerra Tavares, através da RPA, para representar o município no processo arbitral que o opõe ao consórcio construtor do túnel do Marquês e que levou à condenação da autarquia no pagamento de cerca de 17 milhões de euros. Já Rodrigo Esteves de Oliveira, que em Julho de 2004 subscreveu um parecer pedido pela câmara sobre uma empreitada, estava na altura em que assumiu a defesa da ANA a representar o município em três processos decorrentes da providência cautelar posta por José Sá Fernandes contra o túnel do Marquês. Contactado pelo PÚBLICO, o advogado considerou não existir qualquer conflito de interesses, uma vez que "já era advogado da ANA há muitos anos" quando aceitou representar a CML.
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