O incêndio no 23 da Av. da Liberdade,
em Lisboa
Romão Lavadinho (*)
Afinal, o incêndio no 23 da Av. da Liberdade veio clarificar melhor a política de habitação do Governo e das câmaras municipais.
Alguns acontecimentos próximos de tragédias também podem servir para demonstrar quão falsos são os argumentos utilizados para justificar a incúria e o abandono da propriedade urbana.
É recorrente dizer-se que a razão da degradação do património e da existência de prédios devolutos são o resultado do congelamento das rendas, e absurdo, de as rendas ainda se encontrarem congeladas.
Nada mais falso. O congelamento das rendas verificou-se até 1985. Nesse ano teve lugar uma actualização extraordinária e passaram todas as rendas a serem actualizadas anualmente segundo um coeficiente determinado pelo Governo. Se muitos proprietários não actualizaram as rendas, o que é um facto, foi porque não o quiseram fazer.
Também convém relembrar que a todo o momento as rendas pedidas, mesmo no período do seu congelamento, eram geralmente livres, isto é, os proprietários pediam o que muito bem entendiam sem qualquer constrangimento, excepto nos casos em que a construção obedeceu a custos controlados.
Por isso, e de uma forma geral, os proprietários pediam rendas cujos valores rondavam o salário de uma pessoa o que determinou muitos expedientes para se poder pagar as rendas então pedidas. Hoje verifica-se uma situação similar ao pedirem-se rendas cujo valor médio ronda o salário médio nacional, cerca de € 600,00.
Ou seja, o valor das rendas foi sempre alto, proporcionando um excelente rendimento do investimento efectuado, e mesmo especulativo em muitos casos.
Por outro lado, desde 1990, no Governo do Prof. Cavaco Silva, o Regime de Arrendamento Urbano (RAU) foi alterado e veio permitir os contratos celebrados durante cinco anos, renováveis por períodos de três anos.
Concluindo, se não existe mercado de arrendamento, perguntem-se as razões aos proprietários, às Câmaras Municipais e aos Governos. Não aos cidadãos que gostariam de ter esta opção para habitação em vez de se endividarem toda a vida para a conseguirem. Ou seja, que política de habitação existe e qual a que devia existir.
Por isso, o facto de existirem mais de 4.600 prédios devolutos, em Lisboa, num total de mais de 60 mil fogos, não tem qualquer relação com as rendas. Aliás o conceito de devoluto é muito claro: quer dizer que não tem qualquer utilização, que não tem nenhuma família a habitá-lo, desde há muito tempo.
Portanto, as afirmações de existirem devolutos porque as rendas estão congeladas, ou não passam de simples desconhecimento da realidade actual no país e, no caso em exemplo, na cidade de Lisboa, ou pretendem manipular a opinião pública.
O que é por demais evidente é que com esta estafada argumentação, procura-se dar cobertura à especulação imobiliária. De facto, não são os poucos proprietários individuais com eventuais dificuldades financeiras para a realização de obras de reabilitação que estão em causa, mesmo que beneficiem da especulação.
A realidade é que a parte mais significativa dos prédios devolutos é propriedade de grandes proprietários particulares, de imobiliárias e empresas de construção, de Fundos de Investimento Imobiliário, de companhias de seguros, de bancos, das diversas Santas Casas da Misericórdia e outras IPSS e também das Autarquias e do próprio Estado.
A estes não se coloca propriamente qualquer problema de insolvência financeira, mas tão só a procura de encontrar o melhor momento para obter chorudas mais-valias com a expectativa do aumento da volumetria das suas propriedades sem qualquer respeito pelas cidades e pelos cidadãos.
Quanto ao NRAU, que se aplica aos arrendamentos habitacionais celebrados antes de 1990, apenas pretendeu actualizar o valor patrimonial dos prédios e das rendas mais antigas na perspectiva do aumento de impostos, ignorando completamente a necessidade de obras em milhares de edifícios, deixando milhares de famílias a viver em situações degradadas.
O prédio que agora ardeu na Av. da Liberdade estava devoluto há largos anos, sem qualquer rendimento de rendas, sem qualquer cuidado por parte dos proprietários, sem qualquer atenção por parte da Câmara Municipal, sem qualquer medida de protecção dos direitos dos cidadãos em terem uma cidade cuidada, onde dê mais gosto viver, trabalhar e visitar.
A lei existe e determina a realização de obras de conservação de 8 em 8 anos. A lei determina o agravamento do IMI em dobro nos prédios devolutos. Quem a cumpre e a faz cumprir? - eis a questão.
Lisboa, 9 de Julho de 2008
(*) Sociólogo. Presidente da AIL
No comments:
Post a Comment